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Estendo-te a mão


Se eu tivesse coragem estendia-te a mão.

E esperaria.

Esperaria que entendesses o que eu gostaria de dizer.

De te dizer.

Ainda que saiba que há tanto a dizer quando uma mão se estende.

Dá-me a mão, anda comigo, vem daí.

Não é nada disto que eu queria que tu entendesses.

Talvez seja mais, talvez seja só outra coisa.

Eu sei o que quereria que entendesses quando eu te estendesse a mão.

Mas não sei dizê-lo.

Não consigo dizê-lo.

Pois se nem coragem tenho para te estender a mão.

Pitucha

Naquele tempo a porta estava sempre aberta.

Agora que escrevo isto penso que talvez não, talvez não estivesse sempre aberta. Decerto a fechariam durante a noite.

Mas naquele tempo eu não tinha noite. De noite dormia indiferente ao mundo e seus barulhos, mesmo o de uma porta que se fechava.

Pela manhã, ao pequeno-almoço, já a porta estava aberta. Não que a visse, mas ouvia os cumprimentos de quem passava enquanto bebia o leite e comia as torradas com manteiga.

Ora bom dia D. Nascimento, vem à feira?

Bom dia, respondia a minha avó, já lá vou.

E eu a engolir com pressa o pequeno-almoço porque dia de feira era dia de reco-reco.

Vamos à feira dizia sôfrega, vamos.

Que desassossego, reprimia a avó já com as mãos a segurarem o velho porta-moedas porque, naquele tempo, os meus pedidos tinham esse condão de serem respondidos com ternura imediata. As férias eram curtas e poucas as semanas em que eu enchia os ares da casa com o irritante som do reco-reco. Por um dia, dois no máximo, mais não aguentava o plástico do reco-reco e eu ficava uma semana à espera da próxima feira.

Mas a porta estava sempre aberta mesmo quando não havia feira. Eu sei, porque entrava e saía vezes sem conta, consoante o ditasse a minha imaginação ou as brincadeiras do momento. Saía com a corda para ir saltar no jardim. Se decidíamos ir comprar rebuçados voltava a casa largar a corda e pedir dinheiro. Depois vinha beber água, porque os rebuçados eram doces demais. E voltava para largar o casaco de malha porque o calor apertava. Saía de fugida ainda a ouvir a avó a dizer que olhasse que ia ficar doente, toda transpirada assim a tirar o casaco. Optei por não o largar em casa e prendê-lo à cintura como vira os rapazes mais velhos fazer. Era uma ida a menos a casa, mas as recriminações continuavam, isto é que é uma maria-rapaz, agora de casaco atado à cintura, menina não leva o casaco assim, põe-no pelas costas e eu a achar que nunca iria entender esse mundo dos grandes, como é que se segura um casaco às costas a subir árvores, a derrapar em bicicleta, a jogar à bola, até a saltar à corda… Entrava e saía por essa porta sempre aberta, numa liberdade desenfreadamente gozada nas curtas férias na aldeia.

Na cidade, a minha porta nunca estava aberta. Era como se fizesse noite o dia todo.

Pitucha

O livro é um bilhete. Um passaporte. Uma autorização para viajar.

O livro é pluridimensional. Tem passado. Tem futuro. Tem presente cheio de passado e de futuro.

O livro é liberdade. Para ler e para imaginar. Para criar e recriar. Para sonhar.

Pelo livro é que vamos. Sem fronteiras. Tanto, tanto, que por vezes, tantas vezes, custa-nos regressar. E ficamos, mesmo quando do livro virámos a última página, fechámos a capa, o arrumámos na estante.

Ficamos na ânsia de viver mais, de saber mais, de sonhar mais.

Ficamos esperando que a vivência imaginada se torne nossa, vivida a sério, como se fosse a sério.

Ficamos para cheirar os cheiros, saborear os sabores, acariciar as texturas.

Ficamos para conhecer novos amores, viver novas paixões, cultivar novas amizades.

Para sorrir, rir e chorar.

Para que nada acabe, mesmo o que se acabou.

O livro é um caso sério.

Pitucha

Por vezes gosto de brincar com as palavras.


Pronunciá-las devagarinho
tu-li-pa
Ou depressa
T'lipa
Ou alongá-las
Tuuliipaa
Ou enrolá-las como se tivesse um novelo na boca
Tul
i
pa

Por vezes penso em colori-las, dando as cores que a palavra pede
Tulipa
Não poderia ser
Tulipa
Porque há palavras que só por si são cor
Tulipa
Ou imaginá-las feitas matéria como a tulipa de madeira que tenho em casa
Ou uma tulipa em espuma para encher o duche de flores
E decompor a palavra como se decompõe a matéria
T-u-l-i-p-a
Trocando-lhe as letras
u-l-a-t-i-p

Porque cada palavra é um mundo de plasticina.

Pitucha

Personagem

Quando saiu espantou-se com a luz.

Habituara-se a uma claridade desmaiada, uma penumbra permanente cruzada por raros raios de sol invadidos por dançantes partículas de pó.

Então espantou-se com a luz.

Lembrou-se depois que não estava no mesmo sítio. Não estava em sítio algum aliás.

Tinha aceitado ser personagem de uma história e colocara-se, cegamente confiante, nas mãos de quem o havia de escrever.

Fora um desafio: ele que avidamente queria que lhe contassem histórias achou que poderia ser parte de uma história.

Quis saber qual. Perguntou qual história, achando que um personagem podia influir na trama, podia recusar participar em enredo que não lhe agradasse.

Que ideia!

Como poderiam então os contadores de histórias contar-nos uma história se dessem assim liberdade aos seus personagens?

Ele, que se espantou com a luz, acharia que podia recuar para a sua realidade obscura? Sair desse espaço iluminado e deixá-lo vazio, só a luz, só a claridade?

Ora se a história é sobre um personagem que se espanta com a claridade, não é conveniente que ele se ausente!

Ainda assim, aposto que o escritor nos contaria uma história sobre a luz, sobre a claridade. Mesmo que o personagem se ausentasse.

Mas não, hoje a história é outra.

Silêncio, vamos ouvi-la.

Pitucha

DIA INTERNACIONAL DA MULHER

Em dezembro de 1984 o fotógrafo Steve MCurry estava no Afeganistão. Num campo de refugiados, perto de Peshawar, no Paquistão, fotografou Sharbat Gula, a menina dos olhos verdes. Eram olhos reluzentes de uma criança afegã, refugiada, a viver o horror da guerra, numa sala de aula improvisada.

Há uns meses, tivemos notícias de Gula. Tem agora 50 anos. Pediu ajuda a organizações humanitárias para deixar o país depois de os talibãs terem assumido o controle, em agosto de 2021. Vive em Roma, no âmbito do programa italiano de asilo e retirada do Afeganistão. No seu país, mais de metade da população vive abaixo do limiar da pobreza, em situação de insegurança alimentar aguda e as organizações internacionais pedem ajuda humanitária imediata para a população. Num devastador e desesperado testemunho na primeira pessoa, em Cabul, um pai conta como se viu obrigado a vender a filha de sete anos para pagar dívidas da família e matar a fome. Por 65 000 afeganis, mais ou menos 76 000 escudos cabo-verdianos, pouco menos de 700,00€.

Encontro de novo os olhos verdes, cansados de medo e desespero de Gula. E desgrenha-se-me a alma de mágoa e revolta. O que acontecerá a uma menina de sete anos vendida pelo pai? Que futuro lhe estará reservado? Saberá já ler e escrever? Que caminhos amargurados irá percorrer? Que dor tem de suportar quem se vê obrigado a arrancar à forma humana de um coração de pai a caução de vidas entrapadas em horror e fome?

Já não vejo os olhos verdes de Gula. Vejo rostos cobertos, enclausurados, apedrejados. Vejo o semblante tirânico e aterrador de uma das mais rígidas e violentas faces da Sharia. E tremo por não ser possível reaver o momento em que o destino destas mulheres se tornou diferente do meu.

Dir-me-ão que o Afeganistão é demasiado longe, que também aqui, no cimo da rua onde moro, há meninas em situação vulnerável e mulheres de olhar triste. Dir-me-ão que a Província Ocidental de Badghis nos é completamente desconhecida e que Haibatullah Akhundzada, líder dos talibã, é um nome impossível de pronunciar e de memorizar. Mas no olhar profundamente assustado e acossado da “menina afegã” que há trinta e oito anos comoveu o mundo, está a imagem do abandono e da indiferença que se esconde na aba dos nossos dias.

Como se mede a distância do meu coração, ao coração de um pai obrigado a vender uma filha?

Em 1944, Maria Archer, uma voz insubmissa no seu tempo, escreveu Ela é apenas mulher. A obra foi considerada escandalosa e a autora foi censurada, obrigada ao exílio e apagada da História.

Cem anos antes, numa época em que as mulheres estavam confinadas ao espaço da família, Antónia Gertrudes Pusich (1) defendeu que deveriam também aprender a ler e a escrever para poderem participar na vida social e política do País. No Afeganistão, uma menina de sete anos, vendida pelo pai, em 2022, não sabe ler nem escrever, porventura nunca saberá que há caminhos que conduzem a outros destinos.

Há uns anos, conheci casualmente Adilah, uma miúda simpátia, que não gostava da escola. Explicava-me, perante a minha militante insistência na importância de estudar, que a escola ensina matemática, mas não ensina as contas da vida; ensina a ler poesia mas a realidade nada tem nada de poético, pelo contrário, cheira a ranço e a sabão ordinário, feito em casa, com sebo ou óleo de cozinha. Tentei explicar-lhe que, se juntarmos os pedaços normais das pequenas coisas que acontecem todos os dias, ocasionalmente, o mundo pode ser um lugar agradável para se viver. Isso é porque a professora nunca viu todos os meus irmãos, empoleirados, no final do dia, na janela do prédio minúsculo, velho e sujo, onde vivemos – respondeu-me. Nunca ouviu a confusão que o vizinho do rés-do-chão esquerdo faz quando a filha sai de casa sem o Hiyab; os lamentos da velha louca que todos os dias se queixa de que não tem água nem luz; o homem da mercearia que grita cada vez que recebe uma carta da Câmara a exigir que lave o passeio em frente à loja; os protestos quando os engravatados da imobiliária visitam o bairro ameaçando demolir casas para construírem prédios novos. Nunca sentiu o cheiro insuportável a fritos; a água suja; a roupa usada por todos; a banho adiado para quando houver água ou estiver menos frio. Viver não tinha nada de magnífico e ela não precisava da escola porque já tinha o futuro traçado – concluiu. Ia ser ajudante de comerciante, no mercado halal, porque só podia ser ajudante de comerciante, não podia ser outra coisa. Do lado emaranhado do bairro onde vivia, não havia escolhas. Nascer, viver ou morrer não era uma escolha, era apenas o resultado de uma série imprevisível de equações.

No primeiro volume da trilogia Outline de Rachel Cusk (A Contraluz, Quetzal, 2017), uma mulher, professora de escrita, anula-se enquanto personagem, após a experiência de um choque emocional para escutar os outros. Gula, a menina dos olhos verdes, grita-nos que nos inquietemos e nos apressemos a escutar o seu silêncio.

(1) Poetisa, jornalista e dramaturga, nasceu em São Nicolau a 1 de outubro de 1805 e faleceu em Lisboa a 6 de outubro de 1883.

Sofia Santos

Notícias da Casa Grande

Todos a conheciam como a senhora da casa grande.

Não parecia nome que se adequasse, vendo o seu sorriso doce, o seu jeito afável, repousado, discreto. Falava pouco, sorria apenas e assentia com um gesto da cabeça ao que se dizia. De vez em quando, o olhar perdia-se para lá da saudade, em sombras de tristeza e nostalgia e, nesses momentos, contava histórias de outros tempos, tempos em que a casa grande vivia e gargalhava, cheia de pais e de filhos, de criados e de visitantes de passagem, em negócios, em interesses. Lembrava-se da última festa. Que vivera em entusiasmo de não a saber última. Agora recordava-a em cores de sépia e de arco-íris, nesse passado onde tudo estava em ordem e todos estavam vivos. Envelheceu ao contar esses contos passados. Rejuvenesceu quando recordou o curso de direito tirado quando as mulheres se reservavam ainda a trabalhos mais domésticos, sem letras nem canetas. Nesses tempos idos em que estudara como desafio, para se provar, para marcar um lugar na casa grande. Deixaram-na ir. Que ocupasse o tempo enquanto o tempo a não ocupasse a ela com choros e fraldas, com responsabilidades de roupa para passar e de jantares para orientar. O sorriso doce tornava-se decidido, alongando-se em códigos e leis, considerações políticas e opções de sociedade. O passado colava-se ao presente, à sua atividade diária de clientes e de barra.

Que já não era hoje, contudo.

Porque a notícia viera imprevista, fria e direta: "morreu a senhora da casa grande".

Sentiu falta de ouvir as palmas da senhora da casa grande a chamar a Filomena pedindo “um sumo de manga fresco para o senhor doutor, e para mim, um chá”.

Pitucha

Narrador

Há momentos em que anda escondido. Sai pouco. É discreto.

Quando sai, passeia encolhido pelas ruas, rente aos prédios, sem levantar o olhar. Entra com medo nos cafés, espreitando primeiro, conferindo de novo a rua antes de entrar. Por vezes sinto que apressa o passo, ou que atravessa a rua de forma precipitada.

Por mais que observe, não entendo de que foge, quem evita, o que teme.

Seguindo-o, dou comigo a fazer os mesmos gestos, a ter as mesmas precauções, a contornar as mesmas esquinas de jeito esquivo.

E imagino outro narrador que esteja, agora mesmo, a contar a história de duas pessoas que passeiam encolhidas pelas ruas e que entram com medo nos cafés e que atravessam a rua de forma precipitada...

Pitucha

Os conselhos da Inês

Sugestões de leitura para os mais novos

  • Dos 0-3 anos : O que é isto? de Ana Pessoa

Os bebés têm uma visão limitada e uma linguagem própria. Este livro vai ajudar a desenvolver ambas as competências. Graças a uma ilustração a preto e branco, a criança terá curiosidade e com uma escrita em que os sons são repetidos, sorrisos vão aparecer.

  • Dos 3-6 anos : O piolho sabe que, de Mathis e Aurore Petit

O piolho acha que sabe muita coisa mas…

Trata-se de um livro divertido e que tem muitas verdades como “ os peixes têm escamas” mas será que o piolho sabe ?

  • Dos 6-8 anos : O novelo das emoções, de Elisabete Neves

Marta, uma criança que encontra dificuldade em explicar o que vive no dia a dia. Com a ajuda de diversos novelos de lã descobre e interpreta as múltiplas emoções que sente. Um livro ideal para ler com um cobertor de lã neste inverno.

  • Dos 8-12 anos : Uma aventura na Serra da Estrela, de Ana Magalhães e Isabel Alçada

Apetece-te ir fazer esqui ou fazer um boneco de neve mas tens de ir à escola? Este livro permite viajar até à Serra da Estrela coberta de neve e viver uma aventura divertida e improvável. Aconselho a ler este livro com umas luvas quentinhas para não teres frio.

  • Dos 12-16 anos: O auto da barca do Inferno, de Gil Vicente

O novo ano chegou e novas resoluções também. Nesta obra podemos descobrir que as nossas atitudes em vida nos “embarcam” em barcas diferentes, a barca do Paraíso ou a do Inferno. Uma peça cheia de ironia, valentia, corrupção, atrapalhação e muito humor. Prepara as bagagens e embarca na viagem…mas quem vai entrar nas diferentes barcas?

21 de Janeiro de 2023

A Petite faz hoje cinco anos, vejam bem !

Ainda é pequena, mas cresceu muito. Cresceu em metros de prateleiras, em número de livros, em contos contados, em encontros de encantar, em amigos de todos os gostos e credos, em experiências audaciosas, em afetos, … o que tudo isto ajuda a crescer !

Do alto dos seus cinco anos, hoje dá mais um salto, inaugura o blog. Um projeto que aguardava o momento certo para desabrochar e é hoje. Graças às contribuições de amigos inspirados, que logo nos disseram que sim. Bem hajam Pedro Sena-Lino, Pitucha e José Paulo Pego.

Amigos da Petite, sigam-nos que isto vai dar que falar ! Aliás, já ouvimos para aí umas vozes, « olhem, já a formiga tem catarro... »…

Empertigada e ousada, a Petite vai em frente, para outros desafios.

Sigam-nos que isto vai dar que ler !

Belgolongitude, lusopertitude

Em homenagem a José Rodrigues Miguéis e a “La Petite Portugaise”

-Léah!

Eu atravessava o parque de bicicleta, um pouco temeroso de ser apanhado na minha infracção, atento a velhinhas de bengalas encanadas e crianças nas primeiras bicicletas, e portanto, como eu, nas primeiras infracções velocípedes. A voz ecoou atrás de mim, indubitável, num nome que eu conhecia escrito.

- Léah!

Era como se a palavra escrita se tornasse ali e realidade, árvore, ramo, folha, raiz - e com ela eu voltasse a uma terra onde cresci.

- Léah, c'est pas juste!

A voz de menina parecia furiosa com Léah, tal como a palavra que eu conhecia; essa palavra que era uma página, uma personagem, uma história inteira.

Deixei o parque para entrar em Schuman, com um autocarro no meu encalço, e a cabeça toda na Léah real. Não a voz que eu ouvi, de uma cara que não vi, de uma menina que eu não conheço, mas a da Léah que conheço, que é personagem, e que para mim é verdadeira.

Atravessei Schuman com o pensamento todo em Rodrigues Miguéis e na sua Léah, não apenas a do conto, mas a do livro de contos, quase todo ele passado em Bruxelas. Passei pela Place Jourdan, onde sempre o imagino, a tomar uma cerveja no café sujo e térreo no rés-do-chão do prédio onde se encontrava com Léah às escondidas.

O dia ensolarava-se mais, mas não me saía da cabeça a cinza depois do fogo das grandes descrições de Bruxelas, que o mestre Miguéis desenha, um longe curto mas amplo no coração.

"Pelas janelas entrava a tristeza daquele céu que não lembrava as tintas de nenhum pintor. Corria Novembro, e depois das três da tarde era praticamente noite. Eu estalava de impaciência. Saía, punha-me a correr sob a chuvinha, olhando os cafés cheios de gente  de luz."

Era um Março anovembrado. Passo pelo lugar onde sempre imagino que Miguéis vivera, onde Léah vivia; ouço na minha cabeça tão real como nas escadas de um prédio bafiento:

- Léah!

Como chamava a dona da pensão pela pobre, comecei a subir o caminho para casa imaginando-me numa pensão belga há trinta anos, onde o cheiro das batatas fritas se entranhasse com o entardecer.

Tive saudades de coisas recentes; uma daquelas saudades com cheiro a castanhas assadas no outono, bolo rei com manteiga numa infância toda expectativa do Natal. Eu precisava da cidade atravessada como uma página, espelho e artéria; e como era dia de infracções, deixei que uma geografia emocional fosse o meu mapa: fiz o que o meu espírito estranhamente me pedia; guinei a bicicleta e pus-me em direcção à Rue do Trône, uma das mais chatas para duas rodas. Foi ali vizinha a minha primeira e breve casa em Bruxelas, era uma espécie de perto para um momento onde sentia a falta de uma personagem e do seu escritor – como se pudesse ler Miguéis a bordo de uma bicicleta, apanhá-lo a escrever essa mesma página num café onde eu entrasse, os gestos cheios daquela chuva miudinha que acinzenta Bruxelas de uma nostalgia doce.

Contudo, a belgitude é sempre a lei mais forte: o romantismo é curto perante o labirinto das regras; dura mais a cerveja e o doce clareza das cidades flamengas. A Chaussée de Wavre estava com perturbações, numa daquelas obras de Santa Bruxelas que servem para nos beatificar a paciência. A rua é apertada, abraçante, agradável num dia memorável, impossível num dia de trânsito e vias cortadas como então.

Decidi então passear a pé de braço dado com a bicicleta. Volto a Miguéis: onde terá morado? Lembro-me de ver “Schaerbeek” no fundo de uma página; há Schuman antes de o ser nas páginas do seu devorante policial, Uma Aventura Inquietante (sim, o título só poderia ter sido escrito por um bruxelense). Teria ele estado nesta rua? Teria ele sentido a belgitude, apertada nas vias e nas veias, larga nas vistas, concentradamente intensa?

É então que uma montra me acorda: La Petite Portugaise. Pensei logo na “Rua Madureira” de Nino Ferrer, que é afinal sobre uma brasileira que foi brevemente grande no coração do cantor, mas que eu imagino sempre pequena e portuguesa, talvez pelos versos:

«Tu es retournée pour me sourire avant de monter

Dans une caravelle qui n’est jamais arrivée.»

A caravela, contudo, chegara: em forma de livraria. Eu não acreditava: seria uma concretização da minha saudade? A saudade torna o longínquo imediato, concretiza dolorosamente a ausência: é uma lusopertitude. Mal sabia eu que encontrara um porto e um barco. A porta, fechada nesse dia, abrir-se-ia tantas outras múltiplas vezes.

Tudo parecia tão concreto: Bruxelas, Bruc Sel, ponte de sal, onde todos as rotas se juntam para atravessar sentidos. E assim fiz: atravessei a cidade com saudades da Léah verdadeira, a que ele tinha escrito, e mais ainda das páginas de Miguéis: com a Petite Portugaise, os verdadeiros jardins interiores que tenho nesta cidade. A forma mais concreta de Lusopertitude.

Merci, Léah, c'était juste.

Pedro Sena-Lino

2018-2023, Schaerbeek

Retrato de uma história

Não é mais do que um momento, disse ele, um momento só.

No fundo tu não escreves, tu fotografas com palavras. Não são histórias, são retratos.

E isso é mau?

Houve um gesto de impaciência. Um levantar de braços. Um sorriso.

Mau? Disse por fim. Não, não estou a colocar a questão nesses termos. Se o que queres é ser fotógrafa com palavras, tudo bem, mas isso não é escrever histórias.

Uma história tem um enredo, uma trama, um princípio, um meio, um fim. Sei lá…

E se eu não tiver histórias para contar? E se eu só for contadora desses momentos que o cérebro regista e que depois amplia e corta e cria e inventa?

Olhou para o papel. Ficou à espera que a história surgisse, que, de modo mágico, se enrolasse dentro da caneta e saísse pelo bico em jorro constante, como água de uma torneira, como vinho de uma garrafa.

Nada!

Talvez seguindo a tradição, pensou. E escreveu "Era uma vez"

Lembrou-se de príncipes e de princesas e achou que não era uma história dessas que queria contar.

Era uma vez uma bola que rodava nas mãos de um menino.

Não que a frase seja original, mas é um princípio, pensou. Falta o meio, falta o fim.

Enrolou o cabelo nos dedos e ficou a imaginar o que poderia um menino fazer com uma bola.

Jogar, obviamente.

Que pergunta tonta para se colocar, ainda que em silêncio, no desespero de um processo criativo.

Poderá jogar ser o meio da história? Não ficará demasiado curta? Talvez acrescentar outros meninos a andar de bicicleta, a saltar à corda, a subir a árvores. Evitou descrever a bola, não queria que ele dissesse que era mais uma fotografia. Ficaria, portanto, à imaginação dos leitores. Ainda assim, não conseguiu impedir-se de pensar numa bola encarnada.

Faltava-lhe um fim. Que não fosse o final do dia e o regresso a casa do menino que jogava à bola. Sem dúvida que era um fim!

Não, ninguém quer saber de uma história assim. Talvez devesse criar mais personagens.

Levantou-se, olhou pela janela.

Um avô. Um avô como nas histórias. Um avô que conta histórias. Num jardim, num dia de sol, onde há meninos que brincam e um deles tem uma bola (encarnada).

É isso.

Um dia, decidiu, vou escrever esta história.

Pitucha

Em Koprivshtitsa

Segundo o guia de viagem publicado pela Lonely Planet, o hotel Kalina, em Koprivshtitsa, «ne manque pas de classe avec ses chambres immaculées et son service professionnel. Il comprend également un joli jardin». Para ele me dirigi, ainda que, por causa do manto de neve, não tivesse ilusões acerca do jardim. Franqueei o portão de madeira e segui por uma nesga do pátio subtraída ao império do branco. Vinda da Bulgária profunda, abeirou-se de mim uma senhora com casaco de malha grossa, palco de arraial que incluía figuras de folclore em losangos vermelhos, pretos e brancos. Entrámos no edifício onde se situavam os quartos dos hóspedes. Sob a escada de acesso ao andar superior, a receção abria para a sala de refeições, fria e sem graça nos ornatos. Lasso e sem vontade de procurar outro albergue, aceitei em inglês o quarto que me foi proposto em búlgaro. Nas suas paredes adamascadas, composições florais e entrelaces de linhas traduziam de modo canhestro os cânones da arquitetura do Renascimento búlgaro, tão rica noutras casas de Koprivshtitsa. Mais do que pelas janelas, com os estores ao alto e as cortinas brancas de musselina descerradas, a noite entrava através do mau gosto dos candeeiros de parede, edredões e tapetes, da desenxabidez do mobiliário de madeira — cama, mesas de cabeceira, guardaroupa, prateleira, banqueta —, da pane no televisor. A casa de banho, exígua, não tinha sequer espaço diferenciado para duche.

Depois de me instalar, encaminhei-me para o restaurante Tchoutchoura. Mercê de um magnífico hambúrguer recheado com queijo e de um encorpado iogurte com mel, ele resgatou anteriores desacertos da cozinha búlgara.

Durante a noite, fui chão de pouco lisonjeira disputa entre frio, insónia e receio de neve nas estradas pela manhã. À hora do pequeno-almoço, esperavam-me, sobre a mesa da sala, pão, manteiga, queijo, fiambre e tomates de boa cor; a minha anfitriã — o arraial dera lugar a praia dos trópicos estampada numa camisola — trouxe-me duas xícaras, uma cheia de café, a outra com pouco leite. Pedi mais leite, respondeu que se acabara. Protestei e, já de mau cenho, rosnou «magazin»; logo percebi que o ia comprar. Assim que voltou, tirei-lhe o pacote das mãos, tal era a sofreguidão.

Terminei o repasto em paz e, malas feitas, rumei para Sófia. Ao volante, fiz o balanço das férias na Bulgária e pensei na viagem seguinte, a Israel. Concluí que os livros da Lonely Planet tinham perdido o estatuto de bíblia, naquele dia ganho pelo leite.

José Paulo Pego